* Matéria originalmente publicada em 17/04/2020
Muito se tem comparado a pandemia pela qual passamos hoje com a influenza-A de 1918, mais conhecida como gripe espanhola. Avanços em todos os campos do conhecimento em relação a 100 anos atrás não impediram a surpreendente e veloz disseminação da Covid-19 em todo o mundo. O portal da Ales pesquisou e entrevistou especialistas para falar sobre o assunto. Alguns números foram levantados sobre a pandemia de 102 anos atrás aqui no Espírito Santo, mas ainda há poucas informações sobre aquele período.
Conversamos com a médica pneumologista lotada no Centro de Regional de Especialidades (CRE) Metropolitano, em Cariacica, Maria Cristina Alochio de Paiva, que é pesquisadora e doutoranda no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e com o professor titular do mesmo programa, pesquisador de História da Medicina na mesma universidade, Sebastião Pimentel Franco.
A gripe espanhola de 1918 matou no Espírito Santo mais de 120 pessoas. No Brasil, as cidades mais afetadas foram o Rio de Janeiro, com mais de 14 mil mortes registradas de outubro a dezembro; e São Paulo, onde no período de quatro a cinco meses houve 5 mil mortes - equivalente a 1% da população da época, estimada em 500 mil habitantes.
As recomendações de prevenção básicas eram semelhantes às de hoje. Isolamento social, evitar aglomeração, usar máscaras, cuidados especiais de higiene, a começar por lavar as mãos. Além do mais, houve proliferação de recomendações médicas e farmacêuticas, inclusive vacina contra a varíola, e outras comerciais e caseiras, como assepsia das vias respiratórias, solução de água boricada, água oxigenada, quinino etc.
A pandemia contaminou, aproximadamente, 70% dos capixabas e a mortalidade foi em torno de 0,8% da população, segundo dados informados pelo então presidente do estado, Bernardino de Souza Monteiro, ao Congresso Legislativo, em 12 de outubro de 1919.
O presidente do estado falou em “terrível flagello da grippe exotica que, sob a fórma pandemica, assolou todo o Universo, [continua Monteiro] nos últimos dias de Setembro, pouco depois de ter apparecido no Rio de Janeiro, começou a assolar esta Capital e todo o interior do Estado, obrigando-nos a grandes gastos no soccorro da população do Estado, que foi atacada pelo mal na proporção de 70%. Na capital ella matou na proporção de 0,8% da população, e é de crer que egual coefficiente foi attingido em todo o Estado”.
Vitória, de acordo com o censo de 1920, da Diretoria-Geral de Estatística do governo federal, tinha população de 21.866 habitantes. Segundo Monteiro morreram 123 pessoas em todo o estado vítimas da gripe espanhola, em 1918.
“Eu estou tentando contestar esses dados. Só que na lista de enterramento do Cemitério Santo Antônio nem todos têm a gripe como causa no atestado de óbito. Mas tem gripe epidêmica, pneumonia viral, bronco-pneumonia viral. Isso tudo era gripe. Cada médico dava um diagnóstico. Como era uma doença nova, eles não sabiam nem o que era. Na época, não havia conhecimento de vírus, eles só conheciam bactéria. Eles achavam que a gripe era provocada pelo bacilo de Pfeiffer”, explica Maria Cristina de Paiva.
O microscópio de então não conseguia detectar um vírus, apenas bactérias, e muitas já tinham sido descobertas. “Eles sabiam que tinha alguma coisa que não era filtrada (pelos microscópicos de então). O vírus só foi descoberto nos anos 1930. Eles não conheciam o vírus e era uma coisa muito aterrorizante. No caso da gripe espanhola, muito característico como esta (de 2020), tinham aqueles que apresentavam alterações digestivas, como diarreia, náuseas e vômitos; tinham outros com alterações cardíacas; outros com pneumonia viral, que era o mais grave, e a pneumonia secundária, as duas maiores fontes de mortes. Depois, as sequelas, alterações cardíacas e neurovasculares, a doença do sono, alguns quadros de depressão, de transtornos”, detalha Maria Cristina de Paiva.
Faixa etária atingida
A pneumologista revela que a mortalidade por quadro respiratório tinha um índice estabilizado no estado, entre 1916 e 1920. No entanto, com a epidemia houve um salto. Além disso, a doença acometeu faixas etárias diferentes das de outros lugares.
“Em novembro de 1918, nos dez primeiros dias, teve um pico em 65% a mais de mortes. A maior parte das mortes que aconteceram no mundo foi de pessoas entre 30 e 35 anos. Aqui no Espírito Santo foi de 1 a 4 anos, em primeiro lugar, e de 20 a 35 anos”, revela a especialista.
Assembleia fechada
No anúncio do armistício da Primeira Guerra Mundial (1914-918), a Assembleia Legislativa encontrava-se fechada. “Na primeira reunião, o deputado Geraldo Viana fez a saudação pela guerra que tinha acabado (em 11 de novembro) e que a comemoração não pode ser antes por causa da epidemia, pois a Assembleia estava fechada. No dia 9 de dezembro, o deputado faz um discurso informando que somente duas prefeituras do estado não pediram socorro ao Estado”, conta Paiva.
A gripe atingiu toda a população, segundo os relatos oficiais. “Geraldo Viana vai falando dos esforços do governo, a filantropia da população, dos bispos da Igreja, das associações religiosas e filantrópicas. Da mesma forma que acontece hoje, a solidariedade para aqueles que não tinham condição. Os alunos foram dispensados das aulas em outubro e depois a Assembleia aprovou um decreto do governo no qual se suspendiam as aulas e os alunos que tiveram média cinco foram considerados aprovados”, relata Paiva.
Recursos emergenciais
A gripe chegou ao estado no final de outubro e o pico da pandemia no ES foi nos dez primeiros dias de novembro. A Casa permaneceu fechada por, pelo menos, duas semanas. Nas sessões ordinárias da Assembleia Legislativas durante o mês de novembro e dezembro, após o período de resguardo por causa da pandemia, os deputados aprovaram créditos extraordinários para que o chefe do Executivo capixaba, Bernardino Monteiro, pudesse, emergencialmente, atender as demandas da população afetada pela gripe espanhola.
São recursos para “as despesas feitas em socorros prestados pelo Governo do Estado à população da capital e dos municipios, victimas da calamitosa epidemia, conhecida por influenza hespanhola”, consta em um dos decretos aprovados pelos parlamentares.
O então senador capixaba Jerônimo Monteiro em discurso na tribuna do Congresso Nacional descreve a situação: “Esse grande flagelo parece zombar da fortaleza física do homem e deixa como rastro um número extraordinário de mortos e um exército de combalidos entregues à fraqueza, ao depauperamento, à quase invalidez”.
Cachoeiro de Itapemirim
O semanário Cachoeirano, de Cachoeiro de Itapemirim, jornal pertencente, à época, ao Partido Republicano Espírito-Santense, sigla da família Monteiro, publica orientações para a prevenção da gripe espanhola.
Na edição de 27 de outubro de 1918 reproduz orientações do médico Carlos Pinto Seidl, diretor-geral da Saúde Pública do Brasil. Ele indica o uso da vacina contra a varíola: “não temo divulgá-la porque é evidente a vantagem dahi decorrente”, afirma.
Recomenda também a assepsia da boca, nariz e garganta. Além da água, aconselha “agua oxygenada, liquido de Dakin, listerina etc. dissolvidos em agua, na dose conveniente”. Para o nariz, o melhor é a lavagem frequente com um ‘panno em solucção boricada alcoolisada’”, orienta.
Sal de quinino é outra receita, além daquelas vindas da Inglaterra (uso da salicina) e da Suíça (solução de água salgada). Há a recomendação de evitar esforços físicos, aglomeração e lugares fechados.
Reprodução das orientações da Diretoria-Geral de Saúde
Quanto aos sintomas, Seidl empresta as orientações vindas de Portugal. Os médicos informam que os primeiros sinais são catarros bruscos, temperatura acima do normal, prostração, perturbações digestivas. O surto dura mais de três dias, mas a convalescença dura mais de uma semana.
Transmissão
A gripe espanhola, segundo os médicos, não era transmitida pelas poeiras das ruas, pela água e pelas frutas, mas sim pelo ar infectado. Ressaltam que “a única medida prophylactica de real valor está em evitar a permanência em logares fechados, onde haja grande agglomeração de pessoas, ou onde esteja algum atacado do referido mal”.
Já em 10 de novembro, o jornal Cachoeirano noticia que até aquela data houve 23 mortes. Diz que não foi diretamente causado pela gripe “mas 23 obitos oriundos da actual pandemia complicada com outros estados morbidos”. O jornal fala que quando a pandemia “começou a grassar entre os indigentes, a Prefeitura Municipal estabeleceu na Pharmacia Silva um posto de socorros”, e que grupos de solidariedade visitavam regularmente as famílias pobres para levar alimentos.
O próprio semanário deixou de circular por causa da gripe. “Tendo a epidemia atacado quasi todo o nosso corpo typographico, deixou por isto de sahir domingo último o nosso jornal”, diz a nota.